O Tomate
Como alimento quase que essencial à demanda nutricional de cada indivíduo que coma (fato que não representa , necessariamente, uma característica de todos os seres viventes: comer) , o tomate é tomado tanto em num belo texto cinematográfico , bem como em algumas mesas do nosso Brasilzão , como um pequeno veículo através do qual a situação de lixo ideológico e social é exposta, bem como a situação de precariedade humana em que se encontram milhões de seres viventes .
Seu Argemílson , como um sem-número de brasileiros , aproveita o tomate de diferentes formas. Este, o legume (ou fruta) , passa por estômagos dos mais diversos_ desde o que um ser humano educado, carioca ou paulista, pertencente à classe média, membro de uma distinta família, eleitor do PSDB e/ou PMDB come até àqueles mal(?) educados, marginalizados, que não conhecem o Rio ou São Paulo, que não têm classe a que pertencer, nem família a que possa chamar grupo social, e mal entendem de política.
Mas, Seu Argemílson e os seus ressaltam : “Tomate é rico em vitamina C. É bom comer tudo! ”.
O alimento rico em ácido ascórbico pode ser também rico em poluição, lixo tóxico, vermes, sujeira, fezes , urina, papéis higiênicos, escarro, plásticos descartáveis, nojo, repúdio, desprezo, bodum, desdém, pena, misericórdia, esperança, pão-de-cada-dia, alegria, risos frenéticos, alívio feérico ... e até vitamina C.
Fruto de polêmica entre ser fruta ou legume, o tomate é também fruto de trabalho, esforço, lida, história de todo um povo que não tem o que comer; aliás, ter, tem: comem a metáfora do tomate, sua representação mais podre, sua putrefação mais funesta.. História de Seu Argemílson, de Dona Conceição, de Seu Agenor, e tantos outros brasileiros que têm seus dias contados e contam, com imensa satisfação, que o tomate salvou-lhes a vida muitas vezes.
Desgraçado pela poeira das grandes cidades e a poluição de seus valores, Seu Argemílson e seus irmãos vieram para o Rio em 1985 e, desde então, não conhecem nada melhor do que o tomate. Hoje, aos 75 anos, feirante, pai de família, morador de Nova Iguaçu, cria seus filhos e ajuda seus irmãos como pode. Conhece a lida desde os oito anos de idade, quando seu pai dizia-lhe que já estava velho demais para ficar em casa estudando. Falava-lhe , o pai, que criança era até aos sete anos e olhe lá , e que a partir de então, e principalmente “filho-homem”, estudar era besteira e trabalhar , mais do que obrigatório. E ajudava seu pai na roça, plantando e colhendo basicamente... tomates.
E assim, Seu Argemílson vive desde os oito. Rosto marcado pela vida, alma amadurecida ,sorriso maroto. Não lamenta a vida: acorda às cinco da manhã, prepara-se para o trabalho duro na feira , arruma tudo, bota as crianças na escola e assim, segue seus 365 dias do ano. Cria seus filhos com dignidade , nunca precisou roubar para ter seu rico tomate na mesa_ nem precisava, era o tomate seu ganha pão . Após as refeições, toma seu cafézinho e descansa um pouco: detesta televisão. “Nunca fui criado com esse câncer”, diz o velho nordestino. E quando algum político fala na TV, arrebata, “ Ê, tá danado! E pra que tanta maquiagem pra dizer tanta besteira?” E ri-se sempre em época de eleição.
O tomate, nascido e criado com carinho por seu Argemílson e seus irmãos, Dona Conceição e Seu Agenor, é comprado para ser preparado em pizzas, molhos de churrasco, sucos com sal e pimenta, massas, sopas e carnes brancas. Mas, para ele e os seus, nada se joga fora, tudo se aproveita: até suas sementes são cuidadosamente guardadas para uma eventual emergência gastronômica.
Domingo de manhã, abria os jornais, lia as notícias com tristeza. Após o almoço, resolveu ver o filme que alugara no dia anterior. Pensava que tinha a ver com cenas bucólicas e paradisíacas num tal ilha. Foi dormir, calou-se para o resto da semana.
E assim nasce um país , em torno do qual nasce também a tautologia do tomate.
Márcia Regina de Souza Marques.
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